sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

As várias faces e fases do leite...

Quando nascemos, uma das primeiras "imposições" sociais que sofremos é em relação ao leite...neste caso, o leite materno. Carregado de pequenas substâncias, íons, proteínas, imunoglobulinas e principalmente de muito amor e cumplicidade, este é o alimento determinante para os nossos primeiros meses de vida!
Aos poucos, quando começamos a nos acostumar com o doce aconchego do seio materno, este nos é retirado, ora gradativamente, ora bruscamente, quando finalmente nossa querida mamãe retorna às suas atividades profissionais. Nova realidade nos é apresentada, o que requer novo período de adaptação. Ficamos reféns dos "Nans". Nan 1, 2, 3.....sei lá quantos existem, mas não importa. Passamos a depender daquelas latinhas, assim como um doente depende de um remédio. Não dependemos necessariamente da nossa mãe...basta uma irmã, avó, babá, tia (da creche), ou até mesmo uma vizinha mais chegada, para nos preparar esse novo alimento. E passamos a adorá-lo, e assim mais uma vez, nos acostumamos com nosso novo leite....o leite em pó!
Eis que crescemos e o tal do pediatra pede que nos seja introduzida a tal comida pastosa. Arghhh........sopinhas, bananinhas amassadas, papinhas Nestlé........e nosso leitinho, fica restrito a dois momentos do dia: ao acordarmos e ao irmos dormir. E mais......adeus mamadeiras.........Virem-se pirralhos, bebam como gente grande. Aprendam a usar um copo... E assim, surgem as roupas manchadas, as noites molhadas, e o terrível cheiro de leite azedo que toma conta do nosso quarto. Começam aí, os pontos negativos da história.......
Aos poucos, já não tão aficcionados pelo sabor do leite, descobrimos novos sabores. Sucos, refrescos, mate, e Coca-Cola! Aí f*** tudo! Passar daquele líquido branco, eventualmente azedo, com natas flutuantes e pegajosas, para um doce veneno negro, que ao colocarmos sob a luz, adquire uma tonalidade avermelhada única, e ainda nos proporciona um lindo espetáculo com o ballet das "bolinhas" que sobem e descem......só podia ser um prêmio para quem sobreviveu aos primeiros anos de monoterapia alimentar. E que prêmio!!! É aí que se dá o início das desavenças entre mães e filhos. -"Toma esse leite, menina! Se não tomar tudo, não vai ver desenho na TV!" E diante das constantes ameaças, o doce sabor da primeira infância torna-se para nós um remédio amargo que representa o regime presidencialista que rege a família. A presidente "Mamãe", sempre soberana, e nós, na base da pirâmide social, tendo que nos render ao momento lácteo obrigatório, para ganhar nosso salário mínimo de cada dia: um delicioso e gasoso copo de Coca-Cola bem geladinho! Com o tempo, nos tornamos adolescentes, chatos e questionadores por natureza...e o pior, cheios de ódio e repulsa pelo tal do leite! Porém, neste momento da vida, já não somos obrigados mais a engolir aquele alvo líquido que habita nossas geladeiras. Chega de vômitos forçados, leites derramados nos vasos sanitários, e nos vasos de flores do jardim. Chegamos até a surpreender nossa presidente do lar, pedindo com carinho, que ela nos prepare um leitinho quentinho (com Nescau), ao fim de uma noite de festa exaustiva. E o que é a vida...mamãe, que sempre nos obrigou a tomar o leite durante anos e anos, grita cheia de raiva por termos chegados além do horário combinado: -"Se quiser tomar leite, levanta, vai até a cozinha e prepara você. Eu já tô exausta, acordada, te esperando até agora, e ainda tenho que fazer leitinho pro nenenzinho esfomeado.....ahhh, essa é boa!" Estamos diante de uma das grandes incoerências inerente ao papel da mãe/presidente em nossa sociedade do lar.
Vem então a fase adulta. Soberania total. Alguns de nós, ainda sob as asas da presidente Mamãe. Outros já alçaram vôo e tomaram rumos diferentes em suas vidas. E o leite? Como fica nessa história? Na verdade, ele passa a ser um mero companheiro de prateleira de refrigerantes e cervejas que habitam nossa geladeira. Fica ali, pronto para ser consumido a qualquer hora do dia, sem repressão, ou opressão. Livre escolha! E sendo assim, corremos dois riscos extremos: O abandono definitivo, ou o exagero.
É nesta fase que entra meu amigo Sig...que para tudo tem uma explicação. Aos que sempre obedeceram a constituição do lar, e tomaram seu leite sem problemas, o prêmio é o equilíbrio. O leite torna-se uma opção eventual, não-obrigatória, e até mesmo saborosa! Aos que sofreram imposições, rigorosas e passaram então a temer o sabor e até mesmo o odor do leite, só cabe o abandono. Trauma violento, irrecuperável, que pode dar origem a quadros graves de fobias, e muito dinheiro gasto em sessões de psicanálise, para que conversando com Sig, possam ao menos conseguir suportar tomar um café da manhã na companhia do cônjuge, que simplesmente adora o sabor do leite, e insiste em se despedir com um leitoso beijo na boca! Arghhh........
O terceiro e último tipo de reação merece um parágrafo exclusivo! Sig ao conversar comigo, confessou ser este o caso onde o tratamento é mais difícil e a longo prazo. Nele, se enquadram os indivíduos que sofreram imposições, assim como nos dois casos acima, porém por rebeldia nata, se afiliaram ao partido "do contra" e peitaram as ordens presidenciais, até mesmo quando sentiam vontade de tomar toda aquela caixinha de leite que estava na geladeira. Era uma questão de subversão, onde a vontade própria e os desejos, haviam que ser superados pela alegria da contestação. E assim reprimindo a sede que ora existia, resistiam bravamente em nome de uma ideologia que mais tarde os levaria a um grave transtorno obsessivo-compulsivo. Obsecados por leite, procuram compulsivamente por ele nas prateleiras do supermercado, enchem a despensa com caixas fechadas compradas no atacado e entopem-se do líquido branco dia a dia, o que torna-se um hábito que perdura até a mais "tenra idade". E onde está o problema, então? Ahhhh......o problema encontra-se na minoria, que se privou do leite por ideologia durante tantos anos, e agora carrega em si, uma vontade compulsiva de consumo, não só pelo leite, como pelos seus derivados, produtores, comerciantes, e criadores de gado. A compulsão passa a ser não só alimentar, mas também, de cunho sexual. O desejo aflora de imediato nessas pessoas, simplesmente pelo fato de sentirem um cheiro, ou escutarem uma palavra que as faça lembrar o leite. Rapidamente, o indivíduo é tomado por sentimento de paixão obsessiva, que pode levá-lo a fazer loucuras para conquistar sua presa leitosa. Eu e Sig, temos um caso único em tratamento, onde o indivíduo chegou a extemos inimagináveis para alcançar seu objeto de desejo. Gastos desmedidos, perseguições, telefonemas, chats na internet e até mesmo viagens internacionais. Tudo isso para ficar mais perto de alguém que para ele representa uma forte ligação com o leite não ingerido na infância por pura pirraça. Um caso raro de desejos acumulados, onde o leite fica aí representado pela figura de alguém que de alguma forma possui ligação com alguma fonte ou lugar onde ele possa ser obtido: padarias, fazendas de gado, supermercados, lactários e até mesmo maternidades!!! Em última análise, concordamos, eu e Sig, que trata-se de um caso onde a cura completa é difícil de ser alcançada. Podem haver períodos de remissão, porém sempre com a expectativa de um retorno arrasador dos sintomas. É psicanálise para o resto da vida!
PS: este texto deveria ser um relato de caso, mas por questões éticas, e de amizade, tornou-se apenas um relato elucidativo de uma patologia e seus diferentes desdobramentos.
Dedico este texto a uma grande amiga, de quem estou morrendo de saudades...

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